

CAPÍTULO UM
portuguesa.
Maldito d. Manuel i e sua corja de tenentes Eusébios.
Quadrados de pedregulho irregular socados à mão. À mão! É
claro que ia soltar, ninguém reparou que ia soltar? Branco, preto,
branco, preto, as ondas do mar de Copacabana. De que me servem
as ondas do mar de Copacabana? Me deem chão liso, sem
protuberâncias calcárias. Mosaico estúpido. Mania de mosaico.
Joga concreto em cima e aplaina. Buraco, cratera, pedra solta,
bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma numa
interminável corrida de obstáculos.
A queda é a maior ameaça para o idoso. “Idoso”, palavra
odienta. Pior, só “terceira idade”. A queda separa a velhice da
senilidade extrema. O tombo destrói a cadeia que liga a cabeça
aos pés. Adeus, corpo. Em casa, vou de corrimão em corrimão,
tateio móveis e paredes, e tomo banho sentado. Da poltrona para
a janela, da janela para a cama, da cama para a poltrona, da
poltrona para a janela.
Olha aí, outra vez, a pedrinha traiçoeira atrás de me pegar.
Um dia eu caio, hoje não.
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Um dia. Um dia já foi tão longe. Cruzei com o Ribeiro na
Francisco Sá, não nos víamos há tempos, ele disse para a gente
se encontrar “um dia desses”. Morreu no seguinte. Que horror
estava o Caju, aquele forno de Auschwitz. As tumbas pareciam
derreter. Passei mal no crematório, acharam que era emoção.
Não deixava de ser. Estava ótimo, o Ribeiro. Jogou vôlei até o
último entardecer, saiu da praia e apagou no banho, infarto fulminante.
Não tenho mais amigos vivos, o Ribeiro era o último.
Eu tinha certeza de que ele ia me enterrar, corria, nadava, parou
de fumar aos quarenta e se recusou a ficar brocha. A irmã acha
que foi o Viagra. Comeu muita gente o Ribeiro, ele dava muita
importância para isso.
Antes dele foi o Sílvio. Ou o Ciro? Não, o Ciro foi o primeiro,
de câncer, antes do Neto e da mulher do Neto. O Neto não aguentava
a Célia, mas morreu um ano depois dela. Vai entender. Era
insuportável a Célia, depois de velha, então, virou uma mulher
amarga, ranzinza, feia. O Neto não suportou a paz.
Pensar que a Célia foi uma noiva gostosíssima. Devia ter
morrido ali, no auge. Se o Neto soubesse, não tinha chorado o
que chorou no altar. Homem é um bicho muito bobo.
O Sílvio partiu num fevereiro de Carnaval. Ele abriu os trabalhos
na sexta e emendou dez dias virado. No domingo da outra
semana, deixou três vadias de prontidão no apartamento e
saiu para comprar mais pó, misturou com tudo e o coração não
segurou. Encontraram o Sílvio emborcado na Lapa, perto da
Mem de Sá, com um lança-perfume na mão e cinco gramas de
cocaína no bolso. O Sílvio bebia, normal, mas quando veio a
menopausa, eu sei que é andropausa, mas não gosto de andropausa;
é que nem siririca, que é um nome repugnante, melhor
punheta, independente do gênero; enfim, veio a menopausa e o
Sílvio despirocou. Ele conheceu umas gurias novinhas do Sul,
libidinosas, traficas, e virou escravo das duas. A gente parou de se
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ver com as gaúchas, elas tiraram ele de circuito. Deus mandou
duas diabas frígidas para acabar com a raça dele. Foi castigo.
Que ano foi isso? Não sei, já foram tantos: os anos e os amigos.
Não faz muito tempo, ir da minha casa até o consultório do
Mattos, Mattos é o meu clínico geral, me custava dez minutos a
pé. Hoje, levo quarenta. Andar deixou de ser um ato inconsciente.
Vigio os passos, os joelhos, mantenho a atenção na rota.
Tudo dói, pelas razões mais diversas, todas condizentes com a
velhice. O Mattos me mandou para mais de dez especialistas.
Um quer operar a catarata, o outro, a vesícula, todos me entopem
de remédios. O dr. Rudolf acha que minhas veias já não
seguram a pressão do sangue, planeja meter canículas na femoral,
na aorta. Fico quieto, finjo que não estão falando comigo. São
uns neuróticos esses médicos, vaidosos, brutais. Queria ver um
deles encarar a faca.
Opa! Fezes caninas. Como se não bastasse. No meu prédio
tem uma senhora que cria uns minicães histéricos e de latido
fino. Todo fim de semana ela viaja e deixa as bestas trancadas na
área de serviço. Eles ganem de solidão. Ainda denuncio a bruxa
do 704 por maus-tratos. Considero humilhante recolher cocô
com saquinho. Entendo os que deixam para lá, só não aceito o
sujeito mofar com um cachorro dentro do apartamento.
Me arrependo de todos os bichos de estimação que tive.
Infelizes, carentes, sujos. Quatro cachorros e um gato. O primeiro
morreu de velho, cego, manco e fedido. O gato foi esquartejado
pelo pai, tinha um complexo de Édipo retumbante, era fissurado
na mãe. Os outros cachorros definharam por motivos
diversos, todos horrendos: cinomose, tumor e veneno. Minha mãe
espalhou mata-rato pelo jardim e esqueceu de prender o Bóris.
Nunca mais confiei nela. Coitada, limpava o jornal, trocava a
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água, levava no veterinário, chorou como se tivesse perdido um
filho, e mesmo assim não perdoei.
Não há nada mais egoísta do que criança. Não suporto
meus netos. Moram longe, melhor para eles. São barulhentos,
interesseiros. Amei minha filha até ela completar cinco anos,
depois não aguentei a histeria dela, da minha mulher com ela,
dela com as empregadas. Eu fazia qualquer coisa para não ter
que voltar para casa. Acho que só tive um caso com a Marília
para ter para onde ir depois do trabalho. Eu adorava o apartamento
da Marília, ficava lá fazendo hora até umas dez, bebendo
e ouvindo sem escutar a conversinha mole dela.
Eu não fazia questão de sexo, me empenhava mais por ela.
Gostava era da casa pequena, mas muito agradável, no Jardim
Botânico, com uma área no térreo onde ela criava uns cágados.
Nunca fui chegado a taras. Gostava na hora, mas tinha preguiça
de começar. E as mulheres, invariavelmente, transferem
para o homem a obrigação de estar a fim. Como eu nunca estava,
os casos amorosos duravam o tempo da sedução.
O casamento é o estado civil mais indicado para homens
que, como eu, não gostam de conviver com os outros. Nada
mais exaustivo do que administrar encontros e expectativas. Um
mau casamento pode ser ótimo para ambas as partes, e o meu foi
assim. A Irene abstraiu das tentações e eu também, vivíamos
confortavelmente em dois quartos, tudo muito triste e civilizado.
Um dia, ela se deu conta de que estava envelhecendo, que aquela
era a última chance de foder, e gozar, e amar loucamente,
aquelas coisas que mulher acredita que existem. Desconfio que
foi a adolescência da Rita que tirou a Irene do prumo. Ela entrou
para uma análise de grupo e deu para o Jairo, o gerente do
clube, foi chato. Nenhum homem convive bem com a cornidão.
Tive que parar de nadar na piscina, eu gostava muito daquela
piscina, mas a titular era ela.
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A Irene se arrependeu, só que já era tarde. Eu me descobri
sozinho, sem culpa, porque foi ela que me deixou, e ainda me
interessei por umas duas outras moças, bem ao contrário da Irene,
que deu com os burros n’água e nunca mais teve ninguém depois
do remador do clube. Ele era casado e, em um mês, já não atendia
os telefonemas dela. Toda mulher é ingênua. Não nos vemos
há trinta anos, passamos quinze juntos. Comecei a ficar brocha
com a Aurora, a segunda mulher que arrumei depois da Irene.
Minto, a coisa já não ia bem com a Irene, mas com a Aurora foi
definitivo. Sofri uns bons anos, até que relaxei. Adeus, hormônios,
adeus, garotas, adeus, silêncio penoso no quarto, adeus, olhos piedosos.
Serei franciscano. Sátiro e franciscano.
Meu pai era igual ao Ribeiro, não aceitava a própria brochura.
Me lembro de uma Páscoa, ele e minha mãe radiantes,
eu perguntei qual era o segredo. Meu pai bateu com a mão na
coxa dela e disse que a vitamina dele era “essa mulher aqui”.
Fiquei com orgulho deles. No aniversário de setenta e cinco
anos da minha mãe, ela me chamou num canto e disse que não
aguentava mais tentar fazer o pau do meu pai ficar duro. Dava
muito trabalho, ela estava cansada, se sentia obrigada, não queria
mais. Chegou a dizer para ele procurar outra, que não se
importava, mas ele fechou o tempo. Fiquei muito constrangido
com aquela conversa, a Irene estava no pico da crise, e eu sempre
fui contra pai e mãe ficarem falando de sexo com os filhos.
Ela queria que eu o convencesse a deixar ela quieta.
Abri a porta do quarto, tudo fechado, ele na cama de mau
humor. Perguntei como iam as coisas e ele respondeu que mal,
muito mal: a minha mãe tinha um caso com o corretor de seguro.
Endoidara. A esclerose fez do meu pai um homem paranoico,
ciumento e delirante, que acusava a mulher de ter pulado a cerca
com uma lista extensa de homens que conviveram com eles desde
o casamento. Logo ela, que guardou a virgindade e nunca se
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atreveu a querer ninguém. Ele tinha uma arma em casa e veio
com uma história de que ia dar um tiro na minha mãe e depois
se matar. Joguei a pistola no mar.
Eu a trouxe para morar comigo, o que agravou ainda mais a
insatisfação da Irene. Virei um para-raios de problemas familiares,
a Rita repetiu de ano, a cozinheira foi embora, o último cachorro
estrebuchou, deu um vazamento no banheiro, tudo contra.
Internamos o velho num asilo em Maricá, onde ele morreu
convencido de que havia passado cinquenta e nove anos com
uma adúltera compulsiva. A Irene devia ter casado com ele. Estariam
trepando até hoje.
Olha a bicicleta! Todo ciclista é assassino, suicida e assassino.
Me olho no espelho e vejo a tia Suzel. Culpa do estrogênio,
me explicou o Mattos, que deixa os velhos com cara de velhas e
as velhas com cara de velhos. Tia Suzel morreu solteira e virgem,
com oitenta e seis anos. Desses, vinte e seis ela passou abanando
o bafo quente do Andaraí com a ventarola, repetindo que
queria morrer. Dava vontade de fazer a vontade dela. Uma tarde,
Suzel caiu da escada — a queda — e nunca mais rejuntou.
Ela morava com a sobrinha num prédio de três andares sem elevador.
Hoje, me visita no espelho.
O sinal está fechado, não vem carro, mas não arrisco um
tropeço. Espero o verde como um alemão educado. Calor sudanês.
Fritei muito ovo no paralelepípedo da Penha da minha infância.
O Rio sempre foi quente, não é novidade, não tem nada
a ver com essa besteirada de Greenpeace. Desde que eu me conheço
por gente que o mundo vai acabar.
Guardo uma lembrança embaçada dos efeitos da testosterona.
Não sei mais o que é ser jovem, é como falar de outra pessoa.
Nunca fui muito ativo. Eu e o Ribeiro saíamos muito, bebíamos
demais, demais. Troquei o dia pela noite, engordei, criei uma
barriga dura, sustentada por dois gambitos e um pescoço curto
que equilibra a careca lustrosa.
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O Ribeiro não, esse saía da boate e ia direto para a praia, só
dormia depois de correr do Posto 1 ao 6, ida e volta, non-stop.
Ele demorou muito para perder cabelo, o que lhe deu alguns
anos extras de vida ativa como Don Juan do Calçadão. O Ribeiro
não casou, dava aulas de educação física e tinha fixação nas alunas
de dezessete, chegou a apanhar de um pai. Hoje, estaria
preso. Sempre achei que o Ribeiro fosse imortal. Ninguém é.
Quem irá ao meu enterro?
Casei depois do Ciro e fui um dos últimos a me separar. Em
dez anos todos fizeram o mesmo. O Neto não. O Neto encarou a
Célia até o fim. Coitado, nunca soube o que é ficar no banheiro
de porta aberta, dormir com a televisão ligada, fumar no quarto,
comer na cama, e não ter que conversar e nem que assistir novela.
Sou da opinião que o Neto ficou casado porque era mulato.
Eu tenho medo de dar palpite sobre a cor da pele das pessoas.
Até Monteiro Lobato, que é o Monteiro Lobato, foi tachado de
racista. Mas o Neto, por ser mulato, me queimem na fogueira
junto com o Visconde de Sabugosa, sempre correu atrás de parecer
distinto. Ele achava que o casamento conferia status. Não
condeno, até entendo. É racismo? Que seja, dane-se Zumbi. O
Sílvio, que era polaco e calvo louro, não estava nem aí para o
que os outros pensavam dele. Acho que tem a ver.
Me acostumei rápido com a vida de solteiro, mudei para um
pardieiro de fundos na Hilário de Gouveia. A Irene ficou com a
casa e eu com o carro. Eu comia a Aurora e a outra no Chevette
azul-metálico. Lá na Barra da Tijuca, quando aquilo ainda era
um areal. Na volta, a gente parava num daqueles motéis e via um
filme pornô. Quando eu conseguia, repetia o feito. Eu ainda gostava
de sacanagem naquela época, mesmo brochando.
Foram as mulheres que me fizeram perder o interesse. Chatas,
chorosas, carentes, adoram botar a culpa da infelicidade delas
em quem está do lado. Eu nunca dei trela. Mulher fica esperan-
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do que você diga meio ai para descarregar três páginas de folhetim
na sua orelha. Como falam, meu Deus, não cansam de tagarelar.
Depois, abrem o berreiro para o otário ter pena delas. Não
gosto de mulher. Aliás, não gosto de ninguém.
Gostava do Neto, do Ciro, do Sílvio e do Ribeiro. Homem
não fala, cada um diz uma imbecilidade qualquer, a gente ri,
entorna, e pronto, foi uma noite extraordinária. Mulher está sempre
no encalço da grande ocasião.
Opa, abriu. Esse sinal demora uma eternidade para abrir e
dois segundos para fechar. Lá vou eu, ágil como os cágados da
Marília. Não acredito, já está piscando?… Fechou! Não estou
dizendo? Ainda falta um terço de faixa e essa porcaria fecha? Calcularam
com quem esse tempo? Com o Ligeirinho? O que é?
Vai passar por cima? Passa, desgraçado, parte o meu joelho ao
meio com o seu farol de milha. Eu já entendi que você quer
passar, filhinho! Um dia você vai envelhecer, se tiver sorte você
vai envelhecer, e um guri com pressa vai quebrar a sua perna em
vários pedacinhos e você vai passar o resto dos seus dias de fraldão,
com pânico de atravessar a esquina. Bueiro, calçada alta,
fedentina, argentinos.
Não leio jornal, não leio revista, não leio. Também não enxergo.
Só vejo televisão. Futebol, o dia inteiro. Adoro mesa-redonda.
Parei no videocassete, minto, tenho um dvd que veio de
brinde com a tv de quarenta polegadas, mas nunca me entendi
com o controle remoto. Antes, eu alugava um filme ou outro no
caminho do consultório do Mattos, mas fecharam a locadora.
Não senti falta.
Tive a sorte de envelhecer fumando.
Não separo lixo, não reciclo, jogo guimba no vaso, uso aerossol,
tomo longos banhos quentes e escovo os dentes com a torneira
aberta. Dane-se a humanidade. Não vou estar aqui para assistir.
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Não voto há treze anos, não tenho culpa da tragédia em
volta.
Desvio de obra. Como gostam de obra. Os cones sujos no
meio da pista, esses carros a toda tirando fino, não veem que
eu estou aqui? Britadeira. Britadeira. Britadeira. Como é que
esse pobre aguenta? Vai morrer cedo. Não perde nada, mentira,
deve perder alguma coisa; não sei o quê, mas deve. Eu nunca
encarei a morte como uma possibilidade. Não que fosse apegado
a nada de especial na vida, mas é que a morte não existe. A
morte é uma doença crônica.
Me lembro, ainda novo, de ver a mão do Sílvio tremendo e
achar que era ressaca. Mas o Ribeiro ouviu do filho no enterro
que já era Parkinson. O Inácio contou que o pai continuou torturando
as vítimas dele por aí, penando na mão das gaúchas,
mas deu pra trocar a hora do remédio, os nomes, o número do
apartamento. O Sílvio era magro, elegante e mau. Muito mau.
Escroto. Ele se suicidou naquele Carnaval. Tem muitos jeitos de
o sujeito fazer isso.
As mulheres não ligavam para ele. Mas era só trocar duas
frases com o Sílvio para elas gamarem à loucura. E ele jogava com
elas, ligava muito, depois parava de telefonar, fingia ter outras,
tratava mal no dia do aniversário. Mulher adora ser maltratada.
Isso foi no início. Com trinta e dois, o Sílvio casou com a
Norma e a batida acalmou. Só que vieram os filhos, a Norma
teve depressão pós-parto na segunda gravidez e ficou chatíssima.
Para piorar, a sogra do Sílvio foi morar com eles. A casa virou um
Muro das Lamentações. Era choramingo, novela à noite e criança
enchendo o dia inteiro: banho de criança, purê de criança,
brinquedo de criança, meleca de criança, escola de criança, cocô
de criança. Ele perdeu a paciência, enfiou o mais velho num
internato em Petrópolis, de onde o menino só saía para dar uma
pinta no Natal, botou a sogra para cuidar do menor, se despediu
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da Norma e se mandou para a garçonnière que mantinha na
Glória. O Sílvio não era rico, mas também não era pobre. Nem
desfez as malas e já marcou com três garotas, isso no dia da mudança.
O Sílvio era da orgia.
Ele enlouqueceu pelas gaúchas e foi embora para o Sul.
Bebemos à partida. Bebemos muito, numa festa no Leme, e tomamos
umas bolas, também, que o Sílvio apresentou. Ele queria
ensinar a gente a viver. Quando amanheceu, fomos expulsos,
eu, o Ribeiro, o Neto, o Ciro e o Sílvio. Cinco zumbis e uma
penca de donzelas fáceis. O Sílvio propôs uma esticada na batcaverna
dele. Comemoramos a sugestão. Ele entrou e já foi tirando
a roupa, disse que estava com calor. O Ciro se trancou no
quarto com a argentina, o Ciro sempre soube fazer as coisas.
Acho que o Neto foi embora, e o Ribeiro não sei onde foi parar.
Sobramos eu e o Sílvio de cueca, na sala, mais a moça que eu
arrastei, a que sobrou do Neto e a mulata do Sílvio que, quando
vi, já estava atracada com ele na poltrona de pé palito. As outras
duas vieram para cima de mim sem nem perguntar se eu queria,
o Ciro começou a gemer atrás da parede, enquanto a argentina
gritava: Más rápido, más rápido! Brochei gloriosamente. Uma
das meninas, a lourinha do interior, tentou reverter a situação,
mas dei um dinheiro pra ela e mandei andar. O Sílvio capotou
da poltrona com a morena e não levantou mais. O Ciro também
deve ter dormido, porque não ouvi sinal dele no quarto. Saí de
lá onze da manhã, a enxaqueca latejando. Tomei um café preto
na padaria e desabei no tapete do corredor. Fiquei vinte e uma
horas fora do ar.
Talvez o Ciro e o Sílvio fizessem isso habitualmente, mas
eu não. Aquela foi a primeira e última vez que estive perto de
participar de uma suruba entre amigos. Toda amizade masculina
carrega um quê de veadagem. Comer as mesmas mulheres
não deixa de ser um jeito de se comer entre si. No mesmo am-
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biente, então, é um passo. Mas não concebo, nem de brincadeira,
nem de porre, nem de nada, a ideia de beijar na boca o Neto, o
Sílvio, o Ribeiro ou o Ciro. Talvez o Ciro. O Ciro, definitivamente.
Depois dos quarenta, o tesão migra.
O Ciro passava o rodo. As mulheres só faltavam esfregar a
xoxota na cara dele. O Ciro conheceu a Ruth na festa do Juliano
e botou na cabeça que ia casar na igreja, com bolo, madrinha,
véu e grinalda. Ele ficou alucinado com a Ruth. Ela era bonita
mesmo, e inteligente, e sexy. O Ciro acreditou que o grande
amor lhe abriria as portas da monogamia.
Levou uns dez anos para o casamento acabar com o tesão
do Ciro. E o Ciro sem tesão não era o Ciro. Ele entrou num dilema
terrível, falava nisso o tempo todo, não queria trair a Ruth
porque sabia que era um caminho sem volta, mas a Ruth virou
mãe, esposa, companheira, irmã, tudo, menos amante.
Foi aí que ele começou a brigar com ela, briga feia, sem
motivo. Não sei se ele planejou, ou se foi o desespero, mas o
Ciro, de uma hora para outra, deu para se irritar por causa de
uma frase, um copo, um desodorante. Por coisa nenhuma fazia
as malas e saía batendo a porta. A Ruth enlouquecia, faltava ao
emprego, emagrecia, e ele também. Dava uma semana, ele voltava
e os dois fodiam como se tivessem acabado de se conhecer.
Funcionou por uns anos, ele voltou a ficar corado, até que as
discussões viraram uma rotina mais destruidora do que o antigo
ramerrame doméstico. Ele primeiro se engraçou com a Marta,
ou foi a Cinira? Não lembro. Ele comeu uma das duas, ou as
duas juntas, enfim, eu sei que, depois que a porteira abriu, o
Ciro traçou metade do Rio de Janeiro em pouco menos de um
ano. A Ruth definhou. As mulheres cultivam a fantasia de que o
verdadeiro amor é capaz de transformar os homens. Quando isso
não acontece, e isso nunca acontece, elas perdem o orgulho e
viram esses farrapos que a gente vê por aí.
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O Ciro conseguiu ser pior que o Sílvio, porque o Sílvio
nunca amou ninguém, mas o Ciro amava muito a Ruth. Ela ficou
tão chocada com a destrambelhada do marido, o desrespeito
dele por ela, a falta de paciência com a família, que desenvolveu
uma apatia estranha. Começou no dia em que ela flagrou o Ciro
na garçonnière do Sílvio com a mulher de um cliente dele. A
Ruth arrombou a porta aos gritos, a amante se escondeu no lençol
e o Ciro correu para as calças. Depois disso o Sílvio foi proibido
pelo condomínio de emprestar o apartamento. O Ciro ficou
frio, se vestiu e saiu sem dar satisfação. A Ruth continuou gritando
no corredor, enquanto o elevador descia. Ele pegou o primeiro
táxi e zuniu para casa, olha o sangue-frio deste homem. Chegou,
tomou banho, botou o pijama, sentou no sofá e ligou a
televisão. A Ruth ainda demorou uns vinte minutos para aparecer,
possessa, parada na soleira, pronta para o quebra-pau. Só
que o Ciro, gênio, um canalha mas gênio, era só carinho. A Ruth
contou do apartamento, da vagabunda, e ele, na cara dura, disse
que não sabia do que ela estava falando, jurou que chegou em
casa, estranhou que ela não estivesse e sentou para ver tv. Aos
poucos, foi ensaiando uma indignação contida por ela ter soltado
os cachorros em cima de um casal que nem conhecia, e mais,
no apartamento do Sílvio! E fingiu preocupação com a saúde
mental da esposa. Não deu uma semana, internaram a Ruth
num sanatório. O Ciro nunca mais se perdoou, mas também
não fez nada para mudar. Deixou o que sobrava da Ruth na casa
da irmã dela e se mudou para um apartamento pequeno, uma
cobertura na Santa Clara onde não cabia nada que não fosse ele.
E continuou riscando o nome das moças do caderninho. Era
uma base de três por semana, quatro, dependendo da carência
que batia nele.
Jamais achei que o Ciro pudesse ser tão brutal. Do Sílvio,
eu esperava tudo, mas a frieza do Ciro com a Ruth foi chocante.
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Invejei o Ciro a vida inteira. Ele era muito bonito, daqueles caras
que sabem jogar sinuca, futebol, peteca, pôquer, e ganham todas
sem se esforçar. E mesmo nas horas mais condenáveis, como a
daquela quase bacanal na casa do Sílvio, o Ciro sabia ser cortês.
Arrastou a argentina para o quarto, foi cavalheiro.
Eu me casei por causa dele. Como era solteiro, fui ficando
de fora dos almoços de domingo. Ia o Neto e o Sílvio com as
esposas e eu e o Ribeiro sobrávamos. A Irene era amiga da Ruth,
elas armaram um encontro, eu achei que melhor não podia ficar.
Depois, as duas dedicaram anos a falar mal de nós dois.
Pensei que ele estava emagrecendo daquele jeito por causa
das noitadas e do excesso de tudo. Numa terça-feira de sol, o
Ciro me chamou para tomar um café e me contou que estava
com câncer, no pâncreas, sem solução. Ele tinha acabado de
fazer cinquenta anos. Fiquei mudo, não sabia o que dizer. Pensei
no dia em que ele conheceu a Ruth na festa do Juliano, no casal
bonito que eles formavam. O Ciro era o nosso Kennedy. Partiu
seis meses depois desse encontro. Eu fugi dele, fiquei apavorado,
não queria ver. Mas carreguei o caixão. A Ruth não apareceu.
Tem uns trombadinhas vindo na direção contrária. Já perdi
a conta do número de vezes que fui assaltado. Foram tantas, que
eu só saía de casa com a roupa do corpo. Aí, numa tarde besta,
saindo da ressonância lá em Botafogo, dois pivetes me cercaram.
Quando descobriram que eu não tinha dinheiro, nem celular,
nem porcaria nenhuma, me deram uma surra. Agora, carrego
sempre um trocado para o assalto. Passaram. Vai ver eram honestos.
Pretos, de short, chinelo e sem camisa, mas honestos. Bota a
culpa no Monteiro Lobato.
Ganhei do meu pai, de Natal, a coleção completa do Sítio
do Picapau Amarelo. Eu tinha doze anos. Ela sobreviveu e eu
dei para a Rita, achando que estava apresentando o céu para ela,
mas a Rita amarrou a tromba porque queria uma Barbie. Tentei
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ensinar matemática com o Visconde, história com Dona Benta,
gramática com a Emília, mas ela criou aversão ao Sítio, reclamava
que não tinha figura. A Rita cresceu ignorante e fútil. Na
adolescência, torci muito para ela não engordar, porque, com o
qi da minha filha, o melhor que podia acontecer era ela arranjar
um bom casamento.
Arranjou um médio, com um radiologista de Uberaba. O
pai tinha uma clínica de imagem e o filho entrou para o ramo.
Eles se conheceram numas férias dela em Ouro Preto. Meu genro
é uma besta quadrada, do tipo que afirma que todo mal provém
do stress. Então tá, do stress. Sou acometido de um sono
hipnótico toda vez que converso com ele. Pode ser em pé, sentado,
no carro, numa festa horrorosa, dessas de fim de ano. O Felipinho
e o Marcelinho relincham alto para me acordar e cantam
com voz de débil mental que o vovô está gagá. Mal sabem
eles que só estou me protegendo da chatice do ignóbil do pai
deles. Pai esse que lhes deu metade dos genes medíocres, sendo
que a outra metade quem deu foi a mãe deles, que herdou de
mim os piores genes, aqueles que não gostam de Monteiro Lobato.
Os galhos estão podres, Felipinho e Marcelinho. Os seus
filhos vão ser gordinhos que nem vocês, vão apanhar na escola,
vão ser filhinhos de mamãe, riam bem alto, vocês nem sabem o
que vem por aí: acne, pau pequeno, calvície, pressão alta, colesterol,
tosse, mau hálito, pelo no ouvido, falta de ar, incontinência
urinária, derrame, eu vou assistir de camarote. Qualquer garoto
de rua tem uma genética melhor que a de vocês. Agora vão
pro quarto porque eu quero voltar a cochilar ouvindo a ladainha
do seu pai.
A Rita me visita no Rio duas vezes por ano, quer que eu
mude para Uberaba, imagina. Como se eu fosse resistir a Uberaba,
e ela a mim, e eu aos filhos dela. Melhor o asilo, muito melhor
o asilo; em Maricá. Quando ela vem, procuro ser gentil, o idiota
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do marido sempre a tiracolo. Eu marco deles virem à noite, na
hora da insônia, para ver se durmo no embalo da cantilena. Poderoso
sonífero, o papo do meu genro.
Meu quarteirão! Mais cinquenta e sete passos e chego.
Adoro contar os passos. Não saio muito, não tenho aonde ir,
não trabalho há dezoito anos. Outro dia, me dei conta de que
sou funcionário da minha saúde, trabalho full time por ela. Todo
mês faço os exames mensais, todo ano os anuais, todo semestre
os semestrais, quando acaba um, já é hora de fazer o outro.
E tem que agendar, e tem que trazer o protocolo, e guardar a
via, e entrar na fila. Plano é igual inps. O consultório do Mattos
fica num edifício comercial aqui de Copacabana lotado de médicos
senis. De vez em quando, um bate as botas. Vou lá toda
semana, sei a distância, o tempo, as passadas do trajeto completo
e a parcial dos blocos, o ritmo dos sinais, os canteiros, os postes e
as pedras do caminho.
Agora que o Ribeiro morreu, não tem ninguém que eu vá
encontrar, mesmo que por acaso, no cruzamento. Só visito os
médicos e não gosto deles. Não gasto nada. Uma loja alugada,
que herdei do meu pai em Copacabana, paga o seguro-saúde, e
o resto vem da aposentadoria. Como embutido, porco, coxinha
e cupim, bebo água da torneira e não preciso de ninguém.
Que sirene é essa? É bombeiro, achei que era ambulância.
O bom da sirene é que eu paro de escutar o zumbido, o enxame
de abelhas que apareceu há uns cinco anos no ouvido esquerdo,
depois foi para o direito, em estéreo, e só faz piorar. Estou ficando
surdo. Amanhã tenho uma consulta para medir de novo a audição.
Acho que meus óculos ficaram em casa.
Que sirene é essa agora? Ah! É garagem. A garagem do meu
prédio. Cheguei. Nem contei direito, vim conversando. Com
quem? Conversando com quem? Comigo mesmo, que é com
quem eu gosto de conversar. Tem um carro subindo a rampa,
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vem no embalo, melhor acelerar as pernas. É a desnaturada do
704, está fugindo dos cachorros, vai viajar, covarde. Acho que ela
não me viu. Não, ela não me viu. O carro deu aquele voo no fim
da subida, ela vem descacetada, está no celular, não notou que
eu estou aqui. Larga essa porcaria e presta atenção no que está
na sua frente! Eu! Eu estou na sua frente! Ah! Finalmente, reparou,
vai frear, se atrapalhou. Como assim, se atrapalhou? Está
nervosa, é bom mesmo ficar nervosa. Quantos anos tem essa incapaz?
Ela fez exame psicotécnico? Pode dirigir com essa idade?
E os cachorros da área de serviço? Freou! Achou o freio, estou
ouvindo o cantar dos pneus. O carro continua andando; como
assim, continua andando? Derrapou? Não vai parar? Está fora do
alcance dela? Ela me encara com ar de pena e fecha os olhos pra
não ver o que vai fazer comigo. Abre o olho, desgraçada, vem ver
o que você aprontou. Por que é que eu não te denunciei para a
Associação Protetora dos Animais? Eu devia ter desconfiado que
alguém que trata assim o próprio cachorro não tem respeito à
vida humana. Já sinto a lataria roçar o tergal da calça.
Um pulo. Há quantos anos não dou um pulo? Dobro a perna
direita, estico a esquerda e me jogo pra frente. Anda, a lataria no
tergal! Andar deixou de ser um ato inconsciente. Aciono os comandos.
Dobro, estico, estou no ar, me preparo para a aterrissagem,
a ponta do pé toca a pedrinha, relaxo o peso… está solta?
Como assim, está solta? Eu jogo o meu esqueleto em cima do
pedregulho e ele solta? Quem foi o relapso que socou isso aqui?
Cadê o empreiteiro? Cadê o prefeito, que não aparece? Não
tem mais volta, o pé torceu, estou caindo, o carro passa raspando,
mas a gravidade já me puxa em direção ao paralelepípedo.
A queda. A minha queda, aquela que vai me fazer ter saudade
do dia em que eu contava os passos no caminho do consultório do
Mattos. De uma hora para outra serei tia Suzel. A mão arranha
o chão, tenta amparar, não consegue. O cotovelo esfola, o qua-
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